quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A PROVIDÊNCIA E A ORAÇÃO
Padre Garrigou-Lagrange, A Providência e a Confiança em Deus

Para quem considera a infalibilidade da presciência divina e a imutabilidade dos decretos providenciais, não será extraordinário se lhe apresentar uma dificuldade: se a providência é infalível e universal, se abarca a todos os tempos, se todo tem previsto, qual pode ser a utilidade da oração? Como poderão nossas preces alcançar a Deus e fazer mudar de designo Ele que disse de Si mesmo: “Ego sum Dominus et non mutor – Eu sou o Senhor e não mudo”?

Haveremos de dizer que a oração para nada serve, que já é tarde, roguemos ou não, acontecerá o que tem que acontecer?

O Evangelho, pelo contrário, diz: “Pedi e recebereis.”

A objeção, continuamente formulada por incrédulos, em particular pelos deístas do século XVIII e XIX, provém de um erro acerca da causa primeira da eficácia da oração e acerca do fim último ao qual ela vai endereçada. A solução da mesma nos manifestará certas relações intimas da oração com a Providência: 1° - a oração tem seu fundamento na Providência; 2° - a reconhece de uma maneira prática; 3° - coopera com ela.

A Providência, causa primeira da eficácia da oração

Falamos às vezes da oração como de uma força cujo primeiro princípio se radica em nós: uma espécie de persuasão mediante a qual trataríamos de inclinar a vontade de Deus a nosso favor. Porém, tropeçamos na dificuldade apontada: ninguém pode esclarecer a Deus e nem fazê-Lo mudar de desígnios.

Na realidade, como demonstram Santo Agostinho e Santo Tomás (IIa – IIae, q. 83, a.2), a oração não é uma força cujo primeiro princípio se radique em nós, nem um esforço da alma humana para fazê-lo mudar suas disposições providenciais. Assim se diz às vezes, porém só em metáforas e por acomodação a linguagem dos homens. A vontade de Deus é tão absolutamente imutável como misericordiosa; porém justamente na imutabilidade divina está a fonte da eficácia infalível da oração, como nas altas montanhas está a origem dos caudalosos rios.

A oração, com efeito, foi disposta por Deus muito antes que tenhamos pensado em nos colocar a orar. Desde toda eternidade Deus dispôs a oração como uma das causas mais fecundas de nossa vida espiritual; a quis como meio pelo qual obtenhamos as graças necessárias para chegar ao termo de nossa carreira. Pensar que Deus não tenha previsto e querido desde toda a eternidade as orações que no tempo o dirigimos é tão pueril como imaginar um Deus que se inclinasse ante nossa vontade e mudasse seus desígnios.

Não inventamos aos homens a oração. O Senhor mesmo é quem a inspirou aos primeiros homens que, como Abel, dirigiram a Ele suas preces. Deus é quem fazia brotar do coração dos Patriarcas e dos Profetas, e segue inspirando a todas as almas de oração. Deus é quem nos disse por meio de seu Filho: “Pedi e recebereis, buscai e achareis, batei e vos será aberto.”

A resposta para a objeção acima formulada é muito simples no fundo, não obstante achar-se nela escondido o mistério da graça. Ei-la aqui: A oração feita nas condições requeridas é infalivelmente eficaz por quando assim o decretou o mesmo Deus, que não pode desdizer-se.

Não só previu e quis (ou ao menos permitiu) por um decreto providencial tudo o que acontece, até mesmo a maneira como acontece, as causas que produzem os acontecimentos e os meios que conduzem aos fins.

Desde toda eternidade estabeleceu a Providência que não tenha colheita sem plantio, vida familiar sem certas virtudes, vida social sem autoridade e obediência, ciência sem trabalho intelectual, vida interior sem oração, redenção sem Redentor e aplicação de seus méritos, salvação para os adultos sem desejo sincero dela.

Em qualquer ordem que se considere, por ínfimo ou elevado que seja, Deus preparou as causas que devem produzir determinados efeitos e os meios que conduzem a determinados fins. Para as colheitas materiais dispôs plantios materiais; para as colheitas espirituais, plantios espirituais, dos quais um é a oração.

A oração é uma causa ordenada pela Providência ab aeterno para produzir um efeito na ordem espiritual: a obtenção dos dons divinos necessários para a salvação; como o calor e a eletricidade são causas estabelecidas ab aeterno para produzir na ordem física os efeitos que cada dia experimentamos.

Donde a imutabilidade dos desígnios divinos dista muito de opor-se a eficácia da oração, antes, é o fundamento supremo dela. E ainda há algo mais; porque a oração é o ato pelo qual constantemente reconhecemos estar dependentes do governo de Deus.

A Oração é Culto Tributado à Providência

Todas as criaturas vivem dos dons de Deus; porém só o homem e o anjo o reconhecem. A planta e o animal ignoram o que recebem: O Pai celestial, diz o Evangelho, alimenta as aves do céu, porém elas o ignoram. Se o homem carnal o esquece é porque as paixões detêm cativa a razão. Se o orgulho não quer confessá-lo é porque o orgulho lhe veda os olhos do espírito para que julgue as coisas não com olhar elevado, senão com fins mesquinhos e rasteiros.

Se nossa razão não se desvia, deve convir com São Paulo que “nada temos, que não tenhamos recebido. Quid habes quod non accepisti?” (I Cor. 4,7). A existência, a saúde, a força, a luz da inteligência, a energia moral constante, o bom êxito das empresas que um nada pode prejudicar, tudo é dom da Providência. E fora do alcance da razão, a fé nos diz que a graça necessária para a salvação, e mais, o Espírito Santo prometido por Jesus Cristo, constituem o dom divino por excelência, aquele dom de que falava Jesus à Samaritana: “se conhecesses o dom de Deus!”

A oração é o culto tributado a Providência, quando com espírito de fé vamos a Deus pedindo a saúde para o enfermo, a luz da inteligência para resolver as dificuldades, a graça para resistir a tentação e perseverar no bem.

O Senhor nos convida a tributar à Providência este culto cotidiano, manhã e tarde, e continuamente durante o dia. Recordemos como Nosso Senhor, depois de exortar-nos a orar dizendo: “Pedi e recebereis”, manifesta a bondade da Providência com estas palavras: “Há porventura, algum dentre vós que, pedindo seu filho um pão lhe dará uma pedra? Ou se pedir um peixe lhe dará uma serpente? Pois, se vós que sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que O pedirem.”

Dir-se-ia que o Senhor, por vezes, troca os papéis, quando mediante a graça atual nos solicita para que oremos, para que tributemos à Providência este culto que lhe é devido e dela recebamos o que mais temos necessidade. Lembremos aquele exemplo de Nosso Senhor induzindo a Samaritana a orar: “Se conhecesses o dom de Deus, você mesmo me pediria de beber... e Eu te daria a água viva..., que jorra para a vida eterna.” Nosso Senhor suplica para que recorramos a Ele; Ele é “paciente em esperar e impaciente para conceder”.

Nosso Senhor é como um pai que tem de antemão resolvido agradar a seus filhos, porém os induz a pedir lhe. Jesus queria converter a Samaritana, e pouco a pouco fez a oração brotar da alma daquela mulher; porque a graça santificante não é como um licor que se verte em um vaso inerte, antes bem, uma vida nova que o adulto não recebe sem a condição de deseja-la.

Parece que às vezes Nosso Senhor não quer ouvir-nos, sobretudo quando a oração não é bastante pura, ou o objeto dela são os bens materiais em si mesmos e não em relação à salvação. Pouco a pouco a graça nos convida a pedir melhor, recordando-nos a palavra do Evangelho: “Buscai em primeiro lugar o reino dos céus e tudo o mais vos será dado em acréscimo.”

Outras vezes parece que Nosso Senhor nos recusa, como para provar nossa perseverança. Vez deste modo com a Cananéia, lançando lhe esta dura frase, que parecia uma negativa: “Eu não fui enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel; não é justo tomar o pão dos filhos e lança-los aos cães.” A Cananéia, inspirada por certo pela graça que vinha de Cristo, respondeu: “É verdade, Senhor; porém os cachorros comem as migalhas que caem da mesa de seus donos.” “Ó mulher! - Disse Jesus – grande é sua fé; faça-se conforme o pedes.” (Mt. 15,22). E sua filha que era atormentada pelo demônio, ficou curada.

O que ora reconhece que está subordinado ao governo de Deus, infinitamente superior ao dos homens; e o reconhece na prática, não só na teoria e em abstrato. Nossa oração deve tributar incessantemente à divina Providência o culto que lhe é devido: culto de adoração, de súplica, de ação de graças e de reparação.

A oração coopera com o governo divino

A oração não se opõe as disposições providenciais, como se tratasse de torcê-las ou de mudá-las, antes, colabora com o governo divino; porque o que ora, quer no tempo o que Deus quer ab aeterno.
Poderia parecer que, quando oramos, a vontade divina se inclina para a nossa; a verdade é que nossa vontade se eleva até a divina e trata de colocar-se em uníssono com ela. Porque em elevar a mente a Deus, como dizem os Santos Padres, consiste a oração, por vezes de petição, outras de adoração, também de louvor, reparação ou ação de graças.

O que ora como convém, ou seja, com humildade, confiança e perseverança, pedindo os bens necessários para a salvação, colabora com o governo divino. São dois, em lugar de um, que querem a mesma coisa. Esse pecador por quem temos largamente orado, Deus é quem o converte. Essa alma atribulada, para quem temos pedido com insistência luz e fortaleza, Deus é quem a ilumina e fortalece; porém Deus tinha resolvido desde toda a eternidade não produzir o efeito salutar senão com o nosso concurso, depois de nossa intercessão.

As consequências deste princípio são inumeráveis.

Segue-se primeiro que quanto mais conforme seja a oração com as intenções de Deus, tanto mais colabora com o governo divino.  Para que cada vez mais nossa oração seja conforme à vontade divina, rezemos todos os dias, em silêncio e no íntimo da alma, o Pai Nosso, e meditemo-lo acompanhando nossa fé com o amor. Esta meditação amante se tornará contemplativa; por ela obteremos que o nome de Deus seja santificado, glorificado em nós e ao nosso redor, que seu reino venha, que sua vontade se cumpra na terra como se cumpre no Céu; obteremos também o perdão de nossas faltas, a liberação do mal, a santificação e a vida eterna.

Segue-se também que nossa oração ganhará em pureza e eficácia se a fazemos em nome de Cristo, o qual saberá suprir a deficiência de nosso amor e de nossa adoração.

O cristão que cada dia reza melhor o Pai Nosso, e o diz do fundo de sua alma por si mesmo e pelo próximo, coopera grandemente com o governo divino. Coopera muito mais que os sábios que descobriram as leis do curso dos astros, mais que os grandes médicos que encontraram remédios de espantosas enfermidades. A influência da oração de um São Francisco de Assis, de um Santo Domingos, de Santa Teresinha do Menino Jesus, não é certamente inferior a de um Newton ou Pasteur. Quem ora como oraram os Santos, coopera com a salvação dos corpos e das almas; cada um que abre as janelas de suas faculdades superiores para o infinito, é como um universo que gravita em torno de Deus.

Se atentamente consideramos estas íntimas relações da oração com a Providência, concluiremos que àquela é mais poderosa que o ouro, mais eficaz que a ciência. A ciência chega a resultados maravilhosos, porém se adquire por meios humanos e produz efeitos que não excedem os limites naturais. Porém a oração é uma força sobrenatural, cuja eficácia vem de Deus, dos méritos infinitos de Cristo, da graça atual que nos move a orar; é uma força espiritual mais poderosa que todas as forças naturais juntas. Ela consegue o que somente Deus pode conceder: a graça da contrição, da caridade perfeita e da vida eterna, que é o fim do governo divino, a manifestação última da sua bondade.

Consideremos com particular interesse a necessidade e a excelência da oração; sobretudo da oração unida à de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Bem-aventurada Virgem Maria, nestes críticos momentos em que tantos perigos pairam sobre a Europa1;  neste momento em que a desordem geral deve, pelo contrário, servir-nos de estimulante para pensar todos os dias que estamos não somente sob o governo dos homens, continuamente desatinado e imprudente, senão sob o governo infinitamente sábio de Deus, que não permite o mal senão com olhar para um bem superior, e quer que cooperemos para esse bem por meio da oração cada dia mais sincera, profunda, mais humilde e confiante, mais perseverante, por meio da oração unida à ação, a fim de que cada dia se realize em nós e ao nosso redor a petição do Pai Nosso: Fiat voluntas Tua, sicut in coelo et in terra. Nestes momentos, quando o comunismo realiza tantos esforços contra Deus, convém repeti-lo com redobrada sinceridade, não somente de palavra, senão com atos, afim de que o Reino de Deus substitua o reino da concupiscência e do orgulho. Assim chegaremos a compreender de maneira prática e concreta que Deus não permite os males senão com vista a bens superiores, que chegaremos a ver, se não aqui em baixo, depois da morte.

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