segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Vida Oculta em Nazaré

Père Garrigou-Lagrange
La Mère du Sauveur et notre vie intérieur

Maria recebe incessantemente de graça e de caridade, quando leva o Menino nos braços, O alimenta, quando recebe Suas carícias, escuta Suas primeiras palavras, o sustenta em Seus primeiros passos. O Menino, entretanto – diz São Lucas (II, 40) – crescia e se fortificava, estando cheio de sabedoria e a graça de Deus estava nele.” Quando tinha doze anos, acompanhou a Virgem Maria e São José a Jerusalém para celebrar a Páscoa, e no momento do regresso, ficou na cidade sem que seus pais percebessem. Somente no final de três dias o encontraram no Templo entre os doutores da Lei. E Ele os disse: “Porque me buscavam? Não sabiam que devo me ocupar das coisas de meu Pai? Mas eles – faz notar São Lucas, II, 50 – não entenderam o que os dizia.”

Maria Santíssima aceita na obscuridade da fé o que não podia compreender; o mistério da Redenção se irá revelando progressivamente em toda sua profundidade e extensão. Constituiu uma grande alegria o encontrar Jesus, porém esta alegria deixava pressentir muitíssimos sofrimentos.

Bossuet (1) faz estas observações, a propósito da vida oculta de Nazaré, que se prolongou até o ministério público de Jesus: “Os que se chateiam por Jesus Cristo e se envergonham por vê-lo passar a vida em tão estranha obscuridade, se chateiam também com respeito à Maria Santíssima e querem lhe atribuir inúmeros milagres. Mas escutemos o Santo Evangelho: ‘Maria guardava todas essas coisas em seu coração’ (Luc., II, 51)... Não é um emprego bastante digno este de conservar em seu coração tudo o que havia notado e visto de seu caro Filho? Se os mistérios de sua infância foram tão grato passatempo, quanto não se alegraria em ocupar se e meditar em todo o resto da vida de seu Filho? Maria Santíssima meditava em Jesus... permanecia em continua contemplação, fundindo se e derretendo se, por assim dizê-lo, em amor e desejos... Que diremos, pois, de todos esses que inventam belas lendas referentes à Santíssima Virgem? O que vamos dizê-los se a humilde e perfeita contemplação não os basta e satisfaz? Porém, se bastou a Maria e a Jesus, durante trinta anos, não foi mais que o suficiente para a Virgem continuar neste santo exercício? O silêncio da Escritura, com respeito a essa divina Mãe, é mais sublime e eloquente que todos os discursos. Ó homem, demasiado ativo e inquieto por tua própria atividade! Aprende a contentar se com escutar a Jesus em teu interior, lembrando-te Dele e meditando em suas palavras... Orgulho humano! Porque queixais tu com teu desassossego, por não ser nada no mundo? Que personagem foi Jesus nele? E entretanto, que celebridade a de Maria! Eram a admiração do mundo, o espetáculo de Deus e dos anjos! Que faziam? De que se ocupavam? Que fama tinham na terra? E tu queres ter um nome e uma posição gloriosa? Não conheces a Maria nem a Jesus! Dizes: não tenho nada que fazer; quando, em parte, a obra da salvação dos homens está em tuas mãos. Não existem inimigos que reconciliar, diferenças que eliminar, dissensões que terminar, do que disse o Senhor: ‘Tereis salvado vosso irmão’ (Mt., XVIII, 15)? Não existem miseráveis que se há de impedir que murmurem, blasfemem, se desesperem?  E quando tudo isso se tenha concluído, não resta ainda o negócio de tua salvação, a verdadeira obra de Deus para cada um de nós?”

Quando se medita na vida oculta de Nazaré, neste silêncio e progresso espiritual de Maria, e depois, por oposição, no que o mundo moderno chama com frequência de progresso, se chega a esta conclusão: nunca se falou tanto de progresso como se esqueceu do mais importante de todos, o progresso espiritual. O que aconteceu? O que tantas vezes fez notar Le Play, que o progresso inferior buscado por si mesmo, está acompanhado da facilidade do prazer, da ociosidade e descanso, de um imenso retrocesso moral até o materialismo, o ateísmo e a barbárie, como mostram muito bem as duas últimas guerras mundiais.

Em Maria, pelo contrário, encontramos a realização cada vez mais perfeita da palavra evangélica: “Amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo teu espírito, e ao próximo como a ti mesmo” (Lc., X, 27).

Quanto mais avança, mas ama a Deus com todas as suas forças, ao ver, durante o ministério público de Jesus, como se eleva contra Ele a contradição, até a consumação do mistério da Redenção.







(1)    – Elévations, XX semana, IX e X elev.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A CARIDADE FRATERNA – Parte III


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu

A Prática da Caridade Fraterna e os Cuidados da Providência

Santa Catarina de Sena adverte continuamente no Diálogo que a Providência nos deu a cada um, qualidades muito diferentes para que nos ajudemos mutuamente e tenhamos ocasião de praticar a caridade fraterna. Não faltam, por outra parte, ocasiões de faltar a ela, mesmo em ambientes muito cristãos, nos quais, junto a virtudes admiráveis se manifestam verdadeiras enfermidades morais. E mesmo suprimindo todos os defeitos, não faltam motivos de choque e de atritos pela variedade de temperamentos, de caracteres e de aptidões intelectuais que orientam um para a ciência especulativa, outro para a técnica, este para a síntese, aquele à análise. Outras vezes se originam as dissenções porque há quem se compraz em dividir para estorvar a obra de Deus, para impedir, sobretudo, as obras mais elevadas, mais divinas e mais belas. Somente no céu desaparecerá todo motivo de conflito, porque lá, todos os bem-aventurados, à luz divina, veem no Verbo quanto devem desejar e querer.

No meio de todo este cúmulo de dificuldades, como se há de praticar a caridade fraterna? De duas maneiras: primeiro pela benevolência, considerando o próximo à luz da fé, para descobrir nele a vida da graça ou ao menos as aspirações à esta vida; depois pela beneficência, servindo ao próximo, suportando os defeitos dos demais, pagando o mal com o bem, evitando a inveja e pedindo continuamente a Deus a união dos espíritos e dos corações.

Primeiro a benevolência. Temos que ter olhos puros e atentos para ver no próximo, as vezes sob aparência rude e sombria, a vida divina ou as aspirações latentes dela, fruto das graças atuais que todos os homens, um dia ou outro recebem. Para ver assim a alma do próximo, deve haver uma desapegar-se de si mesmo. O que muitas vezes nos impacienta e irrita no próximo não são as faltas graves aos olhos de Deus, mas os defeitos de temperamento ou as inclinações do caráter, compatíveis com a virtude real. Suportamos com maior facilidade a pecadores muito afastados de Deus, porém de condição amável, que a certas almas que, mesmo sendo virtuosas, põem as vezes a prova a nossa paciência. Devemos, pois, considerar à luz da fé aqueles com quem convivemos, para descobrir neles o que agrada a Deus e amá-los com Ele os ama.

Agora, é muito oposto à benevolência o juízo temerário, que não é uma simples impressão a respeito do próximo, mas que consiste em afirmar o mal por leves indícios. Veem-se dois, mas se diz que são quatro, geralmente por orgulho. Quando o juízo é plenamente deliberado e consentido em matéria grave, é falta contra a caridade e a justiça. Contra a justiça porque o próximo tem direito a sua boa fama, que, depois do direito de cumprir com o dever é um dos mais sagrados, muito mais que o direito de propriedade. Pessoas que jamais roubariam vinte francos, roubam ao próximo a reputação com juízos temerários sem fundamento algum. A maioria das vezes o juízo temerário é falso; como é possível julgar com verdade as intenções íntimas de uma pessoa cuja dúvida, erros, dificuldades, tentações, bons desejos e arrependimentos ignoramos? E mesmo o juízo temerário seja verdadeiro, sempre é falta contra a justiça, porque ao emiti-lo, se arroga a jurisdição que não o corresponde: só Deus pode julgar as intenções dos corações, enquanto não são suficientemente manifestas.

É também falta contra a caridade, por vir de espírito malévolo, que só a cor de benevolência deixa escapar alguns elogios superficiais, que terminam sempre com um mais característico. Em lugar de considerar o próximo como irmão, se vê nele um adversário ou rival à quem é preciso combater. Por São Mateus nos diz Nosso Senhor: “Não julgueis para não serdes julgados. Porque com o mesmo juízo que julgardes sereis julgado, e com a mesma medida que medirdes sereis medidos. Mas tu, como te pões a olhar a palha que está no olho de teu irmão e não repara a trave que está em teu olho?” (Mt., 7,1).

Porém, se o mal é evidente, nos manda Deus, por ventura, que nos enganemos? Não, mas proíbe-nos murmurar com orgulho; as vezes nos impõem, em nome da caridade, a correção fraterna realizada com benevolência, humildade, doçura e discrição; e se é impossível ou inútil a correção fraterna particular, se deve pedir, as vezes humildemente, ao superior encarregado de velar pelo bem comum. Finalmente, como diz Santa Catarina de Sena, quando o mal é evidente, o mais perfeito seria não murmurar, mas compadecer-nos e carregar nós mesmo com o mal diante de Deus, ao menos em parte, a exemplo de Nosso Senhor que carregou todas as nossas faltas e nos disse: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo., 13,34). Está é uma das maravilhas do plano da divina Providência. Para não cair, pois, nos juízos temerários, acostumemo-nos a olhar o próximo à luz da fé.

Devemos também ama-lo com atos, eficaz e na prática com amor de caridade benévola e benéfica. De que maneira? Fazendo favores sempre que nos pedir e nos seja possível. Suportando seus defeitos, que é uma maneira de fazer favor e de conseguir pouco a pouco sua correção. Lembremos que a este propósito que não são as faltas graves o que mais nos impacienta no próximo, mas certos defeitos de temperamento, como nervosismo, que faz ser brusco ao fechar a porta, a estreiteza de juízo, a falta de oportunidade, a mania de presumir e outros defeitos semelhantes. Sejamos tolerantes uns com os outros, sem irritar-nos por um mal permitido por Deus para humilhar a uns e provar outros; não degenere nosso zelo em dureza e ao queixar-nos de alguém, não creiamos ter realizado um ideal. Não façamos a oração do fariseu.

Saibamos dizer uma palavra boa no momento oportuno; este é o meio que a Providência põe em nossas mãos para ajudar-nos mutuamente. Um religioso cheio de dificuldades se reanima com uma simples palavra do superior que o deseja muitos consolos no desempenho do ministério e também tribulações que o sirvam de purgatório nesta terra.

A fim de que nosso amor ao próximo seja efetivo, deve-se evitar a inveja, para o qual, como o adverte Bossuet,devemos alegrar-nos santamente das qualidades que Deus dispensou aos demais e que não resplandecem em nós. O mesmo cabe dizer da distribuição do trabalho e dos ofícios eclesiásticos, que contribuem para o esplendor da Igreja e das Comunidades Religiosos. Como diz São Paulo, a mão, longe de invejar o olho, se aproveita da luz que deste recebe; assim também, longe de invejarmos uns aos outros, alegremo-nos das qualidades que vemos no próximo; são também nossas, por sermos todos membros de um mesmo corpo místico, no qual tudo deve concorrer à glória de Deus e à salvação eterna das almas.

Não só temos que tolerar-nos e evitar a inveja como também é preciso pagar o mal com o bem por meio da oração, do bom exemplo e da ajuda mútua. Conta-se de Santa Teresa que um dos meios de conquistar sua amizade era ocasiona-la desgostos. A Santa praticava o conselho de Nosso Senhor: “Se alguém quer tirar-lhe a túnica, dá-lhe também o manto.” É particularmente eficaz a oração pelo próximo no momento mesmo em que nos está fazendo sofrer de alguma forma, como foi a oração de Santo Estevão Protomártir por seus carrascos e a de São Pedro de Verona, mártir, por quem lhe deu a morte.

Finalmente, para praticar devidamente a caridade fraterna devemos pedir continuamente a união dos espíritos e dos corações. Na Igreja nascente dos primeiros cristãos formavam “um só coração e uma só alma”, e deles se dizia:“Vejam como se amam”; e o disse Nosso Senhor: “Nisso conhecerão que são meus discípulos.” Toda família cristã e toda família religiosa deve ser, à luz da fé, uma cópia da íntima união dos cristãos da Igreja nascente. Desta maneira seguirá se cumprindo a oração de Jesus Cristo: “Não rogo somente por estes (os apóstolos) mas também por aqueles que creram em Mim por meio de sua pregação, para que todos sejam um; e como Tu, ó Pai, estás em Mim, e Eu em Ti, assim sejam eles uma mesma coisa em Nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste. Eu os dei a glória que Tu Me deste, para que sejam um, como Nós somos um.” (Jo., 17,20).

Assim se realiza de maneira forte e suave o plano providencial, assim se ajudam mutuamente os homens para caminhar para vida eterna. E aqui descobrimos uma prova da origem divina do Cristianismo; porque o mundo, que edifica sobre o egoísmo, sobre o amor próprio e os interesses que dividem, não pode produzir esta caridade; as associações mundanas não tardam a dissolver-se, porque nas palavras bonitas de solidariedade e fraternidade se ocultam muitas invejas e ódios profundos.

Somente o Salvador pode libertar-nos, que para isso veio ao mundo. “Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de coelis... et homo factus est.”

A CARIDADE FRATERNA – Parte II


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu


Qual é o objeto secundário da caridade?

Nos diz o segundo mandamento da Lei: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo por amor a Deus.” O objeto secundário da caridade somos, antes de tudo, nós mesmos, devemos nos amar santamente, desejando nossa salvação para glorificar eternamente a Deus; o é, em segundo lugar o próximo, a quem por amor a Deus temos que amar como a nós mesmos, desejando-lhe a salvação e os meios que conduzem a ela, afim de que juntamente conosco glorifique eternamente a Deus. Nosso Senhor nos apresenta o amor ao próximo como consequência necessária, irradiação e sinal certo do amor de Deus: “Nisto conhecerão que são meus discípulos, se tiveres amor uns aos outros” (Jo 13,35). E diz em outro lugar São João: “Se alguém diz: amo a Deus; porém aborrece seu irmão é um mentiroso” (I Jo 4,20).

A caridade fraterna, como se vê, difere infinitamente da inclinação natural que nos move a fazer o bem ao próximo para o agradar, ou nos leva a amar os benfeitores, a aborrecer aos que nos fazem mal e a ser indiferente com os demais. O amor natural nos faz nos faz amar o próximo por suas boas qualidades naturais e pelos benefícios que dele recebemos. Porém o motivo da caridade é muito distinto; a prova disto é que devemos “amar mesmo nossos inimigos, fazer o bem aos que nos aborrecem e orar pelos que nos perseguem” (Lc. 6, 27-35).

A caridade é também superior à Justiça, não somente a comutativa e a distributiva, mas também à justiça legal e à equidade, que nos mandam respeitar os direitos do próximo por amor ao bem comum da sociedade.

A caridade nos faz amar a nosso próximo e mesmo nossos inimigos, por amor a Deus com o mesmo amor sobrenatural e teologal com que amamos a Deus.

Porém, como é possível amar com amor divino aos homens, que em geral, são imperfeitos e mesmo malvados?

A Teologia responde com um exemplo muito simples que comenta Santo Tomás desta maneira: “O que muito ama seu amigo, ama com o mesmo amor aos filhos deste amigo; os ama porque ama a seu pai, e em consideração a seu pai lhes deseja todo bem; se necessário fosse, iria em socorro deles por amor a seu pai e mesmo perdoaria suas ofensas. Se os homens, pois, são filhos de Deus, ou ao menos são chamados a sê-lo, devemos amar a todos, mesmo nossos inimigos, e ama-los na medida com que amamos nosso Pai comum” (1).

Para amar desta maneira a sobrenatural a nosso próximo, preciso é contemplá-lo com os olhos da fé, dizendo: esta pessoa de temperamento e de carácter opostos aos meus, “não nasceu somente da vontade da carne e do sangue ou da vontade do homem”; como eu, “nasceu de Deus” ou foi chamada a nascer de Deus, a participar da mesma vida divina, da mesma bem-aventurança. Com estes olhos devem olhar-se todos os membros de uma mesma família; e não somente estes, mas também os da mesma associação e da mesma pátria, e muito mais aos da Igreja inteira, que sem desconhecer a natural e necessária variedade de pátrias, as compreende todas para dar entrada a todos seus membros no Reino de Deus.

E assim, podemos e devemos dizer das almas com quem vivemos e mesmo daquelas que naturalmente nos são antipáticas: Esta alma, mesmo quando não estiver em graça de Deus é certamente chamada a estar ou a tornar-se filha de Deus, templo do Espírito Santo, membro do corpo místico de Cristo; quem sabe este esteja mais próximo que eu do Coração de Nosso Senhor e seja uma pedra viva trabalhada mais que muitas outras pela mão de Deus, para ocupar um lugar na Jerusalém Celeste.
Como, pois, não ama-la, se amo a Deus de verdade? E, se não amo esta pessoa, se não desejo seu bem e sua salvação,meu amor a Deus é uma mentira. Se, pelo contrário, a amo, não obstante a diferença de temperamento, de caráter e de educação, é sinal que amo a Deus. Posso realmente amar esta pessoa com o mesmo amor essencialmente sobrenatural e teologal com que amo as Três Pessoas divinas; porque nela amo a participação da vida íntima de Deus que já recebeu ou está destinada a receber, amo a realização da ideia divina que dirige seu destino e a glória que é chamada a dar a Deus.

Objetam os incrédulos: porém, é isso realmente amar o homem? Não é melhor amar no homem somente a Deus e a Cristo, como se admira um diamante em seu precioso cofre?

O homem queria que o amassem por si mesmo; mas não é esse título para exigir o amor divino. Para reagir contra tão egoísta tendência dizia Pascal com frase intencionalmente paradoxal: “Não quero que me amem.”
Realmente a caridade não ama somente a Deus no homem, senão o homem em Deus e o homem por Deus. Porque a caridade o que deve ser o homem, parte imperecedoura do Corpo Místico de Cristo, e faz tudo que está a seu poder para que consiga alcançar o céu. A caridade ama mesmo o que o homem é por graça e, se não tem a graça, ama nele a natureza, não decaída, lastimada e hostil à graça, mas porque é capaz de recebe-la.

A caridade ama o homem mesmo, porém por Deus, para a glória que é chamado a tributar-lhe, que consiste na manifestação esplêndida da Bondade divina.

Tal é a essência do amor ao próximo ou da caridade fraterna: extensão de nosso amor de Deus a todos que são por Ele amados.

***
Daqui nascem as propriedades da caridade fraterna. Segundo ficou dito, deve ser universal, sem fronteiras. Não pode excluir ninguém, nem na terra, nem no purgatório, nem no céu. Somente se detém ante o inferno. Só se exclui os condenados que não são capazes de chegar a serem filhos de Deus e não há neles a menos chance de ressurgir; o orgulho e o ódio os impedem de sequer pensar em pedir perdão. Porém, fora do caso certo da condenação de uma alma, quem pode estar certo disso? A caridade se estende a todos, sem outros limites que do amor do Coração mesmo de Deus.

Resplandece aqui uma grandeza incomparável, que tanto mais ressalta, quanto mais divididas, humanamente falando, estão as almas, como aconteceu na guerra passada, quando um soldado alemão terminava a Ave Maria que a morte tinha deixado incompleta nos lábios de um soldado francês. Nosso Senhor e a Virgem Santíssima uniam aqueles dois irmãos, embora suas respectivas nações continuavam profundamente divididas. Este é o grande triunfo da caridade.

Para ser universal, não necessita a caridade ser igual para com todos; porque a caridade respeita e eleva a ordem ditada pela natureza. Devemos amar primeiro e sobretudo a Deus, mais que a nós mesmos, pelo menos com amor de estima (appretiative); e, se bem que, nem sempre sentimos esse fervor sensível do coração para com Ele, ao menos a intensidade deste amor deve ir constantemente em aumento. Logo, temos que amar nossa alma para glorificar eternamente a Deus, depois ao próximo e, finalmente, nosso corpo, dispostos sempre a sacrifica-lo pela salvação de uma alma, sobretudo quando é obrigação nossa fazê-lo. No que toca ao próximo, temos que amar primeiro os melhores, os que estão mais próximos de Deus, e também aqueles que estão mais próximos de nós pelo sangue, a afinidade, a vocação ou a amizade. Quando mais próxima de Deus está uma alma, mais merece nosso carinho. Quando mais próxima de nós está, mais íntimo é nosso amor por ela e mais completa deve ser nossa abnegação no que se refere à família, a pátria, a vocação e a amizade (2)Donde que a caridade não destrói o patriotismo, mas o eleva, como aconteceu com Santa Joana Darc e São Luís
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Tal é a ordem da caridade: Deus quer reinar em nosso coração, mas sem excluir carinho algum que seja compatível ao Seu; antes o eleva, o vivifica e o faz mais nobre e mais generoso. Mesmo aos inimigos da Igreja devemos amar, rogando por eles; porém seria transtornar a ordem da caridade, com o pretexto de misericórdia, amar mais aos inimigos da Igreja que alguns de seus filhos que trabalham ao nosso lado.

Finalmente, a caridade fraterna, como o amor de Deus, não deve ser só afetiva, mas também efetiva e ativa, não somente benévola, mas também benfeitora. No lo disse Nosso Senhor: “Amai vos como eu vos tenho amado”; Ele nos amou até a morte de Cruz; os santos o imitaram fazendo de sua vida um ato contínuo de caridade transbordante, fonte de paz e santa alegria.

Tal é a caridade fraterna, extensão ou prolongação de nosso amor a Deus.

Continua...

Notas:
      (1)       – Santo Tomás, IIa – IIae, as duas grandes questões 25 e 26 sobre a extensão e a ordem da caridade. As resumimos nas páginas seguintes do texto.
      (2)       – Santo Tomás, IIa – IIae, q. 26, a.8.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A CARIDADE FRATERNA – I parte


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu


Sempre é de sumo interesse o tema da caridade, e convém insistir continuamente nele, sobretudo em nossa época, quando a caridade fraterna é negada por todo gênero de individualismos, e completamente falseada pelo humanitarismo dos comunistas e internacionalistas.

O individualismo põe o olhar somente no bem útil e deleitável do indivíduo, ou, no máximo, do grupo relativamente reduzido a que pertence o indivíduo. Daí procede a violência da luta, as vezes entre membros da mesma família, porém sobretudo entre as classes e os povos. Daí a rivalidade, a inveja, a discórdia, o ódio, as dissenções mais profundas. O individualismo desconhece o bem comum em seus diversos graus e insiste quase exclusivamente nos direitos individuais ou particulares.

Pelo contrário, o humanitarismo dos comunistas e internacionalistas afirma de tal maneira os direitos da humanidade em geral, mais ou menos identificada com Deus, de forma panteísta, que desaparecem os direitos do individuo, da família e dos povos; e, com o pretexto de unidade, de harmonia e de paz, se prepara uma confusão espantosa e uma desordem sem precedentes, como vemos na Rússia desde a revolução. Pretender que todas as partes de um organismo sejam tão perfeitas como a cabeça, ou suprimir esta porque é mais perfeita que os membros, é destruir o organismo inteiro.

É evidente que a verdade se encontra entre estes dois erros extremos e acima deles. Colocada a igual distancia do individualismo e do comunismo, afirma a verdade os direitos do indivíduo, da família e dos povos, como também as exigências do bem comum, superior a todo bem particular. O conceito justo das coisas salvaguarda o bem individual mediante a justiça comutativa, que regula as transações entre os particulares, e mediante a justiça distributiva, que reparte equitativamente os bens e os cargos; salvaguarda também o bem comum por meio da justiça legal, que dita e faz cumprir as leis justas, e por meio da equidade, que se rege pelo espírito das leis em circunstancias excepcionais em que a letra fica inaplicável.

Estas quatro espécies de justiça, admiravelmente assinaladas por Aristóteles e explicadas por Santo Tomás em seu tratado de Justitia (IIa – IIae, q. 58, 61, 120), bastam em certo sentido para guardar o justo meio entre os erros contrários ao individualismo e do comunismo humanitário. Não é, por certo, bastante conhecida a doutrina de Santo Tomás sobre a justiça; poderia ser objeto de muito interessantes e úteis trabalhos.

Porém, estas quatro classes de justiça: comutativa, distributiva, legal ou social e equitativa, por muito perfeitas que sejam, mesmo esclarecidas pela fé, nunca poderão chegar à perfeição da caridade ou amor de Deus e do próximo, cujo objeto formal é incomparavelmente superior.

Examinemos primeiro qual seja o objeto primário da caridade e qual o secundário. Vejamos em seguida como há de exercer e como por meio dela se cumpre o plano da Providência.

***

Qual é o objeto primário e o motivo formal da caridade.

O objeto primário da caridade está muito acima do bem do indivíduo, da família, da pátria e mesmo da humanidade. Devemos amar a Deus sobre todas as coisas, mais que a nós mesmos, por ser infinitamente melhor que nós. É o primeiro mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente” (Lc., 10, 27).

Este preceito supremo, ao que estão subordinados todos os demais preceitos e conselhos, é de ordem sobrenatural; porém está conforme também com a inclinação natural, mais ainda, com a inclinação primordial de nossa natureza e, em certo modo, de toda a natureza criada.

Verdade é que existe e nós o instinto de conservação individual, como também o de conservação da espécie, e uma inclinação que nos leva a defender nossa família e nossa pátria, e a amar também nossos semelhantes; porém, é todavia mais profunda, como demonstra Santo Tomás (Ia, q. 60, a. 5), a inclinação de nossa natureza a amar a Deus, que nos criou, mas que a nós mesmos. – Por quê? Porque o que de sua mesma natureza pertence a outro, como a parte ao todo, a mão ao corpo, está naturalmente inclinado a amar esse outro mais que a si mesmo. Por isto se sacrifica a mão de um modo espontâneo para salvar o corpo. Agora bem, toda criatura, em tudo quanto é, depende necessariamente de Deus, criador e conservador de nosso ser; e por conseguinte, toda criatura está naturalmente inclinada a amar o Criador mais que a si mesma.

E assim, a lei de coesão do universo e buscando o bem do mesmo, que é a manifestação da bondade de Deus; e a galinha, como disse Nosso Senhor, recolhe seus pintinhos debaixo das asas, para defendê-los do gavião, e sacrifica, si é preciso, a própria vida pelo bem da espécie, que faz parte do bem universal.
Esta inclinação primordial da natureza está no homem e no anjo iluminada pela luz da inteligência e nos move de uma maneira mais ou menos consciente a amar a Deus, autor de nossa natureza, mais que a nós mesmos.
É indubitável que o pecado original debilitou essa inclinação natural, porém, apesar disso, subsiste em nós a vontade, faculdade intelectual imperecedoura.

Esta mesma inclinação natural foi elevada pela virtude sobrenatural ou infusa da caridade, que é de ordem infinitamente superior à natureza humana e mesmo a angélica. À luz da fé infusa, a caridade nos faz amar a Deus mais que a nós mesmos e sobre todas as coisas, não só como autor de nossa natureza, senão também como autor da graça; nos faz amar a Deus “que primeiro amou a nós” dando-nos a existência, a vida, a inteligência, e o que é maior, a graça santificante, princípio de vida eterna, gérmen cuja plena floração será a visão imediata da essência divina e do amor sobrenatural e santíssimo que não poderá destruir nem diminuir.
Tal é o objeto primário da caridade: Deus, que nos amou primeiro e nos fez partícipes de sua vida íntima. Donde a caridade é a amizade entre Deus e o homem.

O motivo formal de nossa caridade é ser Deus infinitamente bom em si mesmo, infinitamente melhor que nós mesmos e seus dons.

Se não meditamos continuamente este objeto primeiro e no motivo formal da caridade, não poderemos entender como sé tenha que amar o objeto secundário.

Realmente não há duas virtudes de caridade, uma que se refere a Deus e outra que se refere ao próximo. É uma mesma e única virtude teologal, princípio destes dois amores essencialmente subordinados.

Nada pode querer a caridade senão em relação a Deus mesmo, por amor de Deus; como nada pode ver a vista senão por meio da cor e com relação a ele, nem o ouvido perceber o som e o que é sonoro. Mas por amor a Deus devemos amar tudo o que com Ele se relaciona.

***
(Continua...)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A PROVIDÊNCIA E A ORAÇÃO
Padre Garrigou-Lagrange, A Providência e a Confiança em Deus

Para quem considera a infalibilidade da presciência divina e a imutabilidade dos decretos providenciais, não será extraordinário se lhe apresentar uma dificuldade: se a providência é infalível e universal, se abarca a todos os tempos, se todo tem previsto, qual pode ser a utilidade da oração? Como poderão nossas preces alcançar a Deus e fazer mudar de designo Ele que disse de Si mesmo: “Ego sum Dominus et non mutor – Eu sou o Senhor e não mudo”?

Haveremos de dizer que a oração para nada serve, que já é tarde, roguemos ou não, acontecerá o que tem que acontecer?

O Evangelho, pelo contrário, diz: “Pedi e recebereis.”

A objeção, continuamente formulada por incrédulos, em particular pelos deístas do século XVIII e XIX, provém de um erro acerca da causa primeira da eficácia da oração e acerca do fim último ao qual ela vai endereçada. A solução da mesma nos manifestará certas relações intimas da oração com a Providência: 1° - a oração tem seu fundamento na Providência; 2° - a reconhece de uma maneira prática; 3° - coopera com ela.

A Providência, causa primeira da eficácia da oração

Falamos às vezes da oração como de uma força cujo primeiro princípio se radica em nós: uma espécie de persuasão mediante a qual trataríamos de inclinar a vontade de Deus a nosso favor. Porém, tropeçamos na dificuldade apontada: ninguém pode esclarecer a Deus e nem fazê-Lo mudar de desígnios.

Na realidade, como demonstram Santo Agostinho e Santo Tomás (IIa – IIae, q. 83, a.2), a oração não é uma força cujo primeiro princípio se radique em nós, nem um esforço da alma humana para fazê-lo mudar suas disposições providenciais. Assim se diz às vezes, porém só em metáforas e por acomodação a linguagem dos homens. A vontade de Deus é tão absolutamente imutável como misericordiosa; porém justamente na imutabilidade divina está a fonte da eficácia infalível da oração, como nas altas montanhas está a origem dos caudalosos rios.

A oração, com efeito, foi disposta por Deus muito antes que tenhamos pensado em nos colocar a orar. Desde toda eternidade Deus dispôs a oração como uma das causas mais fecundas de nossa vida espiritual; a quis como meio pelo qual obtenhamos as graças necessárias para chegar ao termo de nossa carreira. Pensar que Deus não tenha previsto e querido desde toda a eternidade as orações que no tempo o dirigimos é tão pueril como imaginar um Deus que se inclinasse ante nossa vontade e mudasse seus desígnios.

Não inventamos aos homens a oração. O Senhor mesmo é quem a inspirou aos primeiros homens que, como Abel, dirigiram a Ele suas preces. Deus é quem fazia brotar do coração dos Patriarcas e dos Profetas, e segue inspirando a todas as almas de oração. Deus é quem nos disse por meio de seu Filho: “Pedi e recebereis, buscai e achareis, batei e vos será aberto.”

A resposta para a objeção acima formulada é muito simples no fundo, não obstante achar-se nela escondido o mistério da graça. Ei-la aqui: A oração feita nas condições requeridas é infalivelmente eficaz por quando assim o decretou o mesmo Deus, que não pode desdizer-se.

Não só previu e quis (ou ao menos permitiu) por um decreto providencial tudo o que acontece, até mesmo a maneira como acontece, as causas que produzem os acontecimentos e os meios que conduzem aos fins.

Desde toda eternidade estabeleceu a Providência que não tenha colheita sem plantio, vida familiar sem certas virtudes, vida social sem autoridade e obediência, ciência sem trabalho intelectual, vida interior sem oração, redenção sem Redentor e aplicação de seus méritos, salvação para os adultos sem desejo sincero dela.

Em qualquer ordem que se considere, por ínfimo ou elevado que seja, Deus preparou as causas que devem produzir determinados efeitos e os meios que conduzem a determinados fins. Para as colheitas materiais dispôs plantios materiais; para as colheitas espirituais, plantios espirituais, dos quais um é a oração.

A oração é uma causa ordenada pela Providência ab aeterno para produzir um efeito na ordem espiritual: a obtenção dos dons divinos necessários para a salvação; como o calor e a eletricidade são causas estabelecidas ab aeterno para produzir na ordem física os efeitos que cada dia experimentamos.

Donde a imutabilidade dos desígnios divinos dista muito de opor-se a eficácia da oração, antes, é o fundamento supremo dela. E ainda há algo mais; porque a oração é o ato pelo qual constantemente reconhecemos estar dependentes do governo de Deus.

A Oração é Culto Tributado à Providência

Todas as criaturas vivem dos dons de Deus; porém só o homem e o anjo o reconhecem. A planta e o animal ignoram o que recebem: O Pai celestial, diz o Evangelho, alimenta as aves do céu, porém elas o ignoram. Se o homem carnal o esquece é porque as paixões detêm cativa a razão. Se o orgulho não quer confessá-lo é porque o orgulho lhe veda os olhos do espírito para que julgue as coisas não com olhar elevado, senão com fins mesquinhos e rasteiros.

Se nossa razão não se desvia, deve convir com São Paulo que “nada temos, que não tenhamos recebido. Quid habes quod non accepisti?” (I Cor. 4,7). A existência, a saúde, a força, a luz da inteligência, a energia moral constante, o bom êxito das empresas que um nada pode prejudicar, tudo é dom da Providência. E fora do alcance da razão, a fé nos diz que a graça necessária para a salvação, e mais, o Espírito Santo prometido por Jesus Cristo, constituem o dom divino por excelência, aquele dom de que falava Jesus à Samaritana: “se conhecesses o dom de Deus!”

A oração é o culto tributado a Providência, quando com espírito de fé vamos a Deus pedindo a saúde para o enfermo, a luz da inteligência para resolver as dificuldades, a graça para resistir a tentação e perseverar no bem.

O Senhor nos convida a tributar à Providência este culto cotidiano, manhã e tarde, e continuamente durante o dia. Recordemos como Nosso Senhor, depois de exortar-nos a orar dizendo: “Pedi e recebereis”, manifesta a bondade da Providência com estas palavras: “Há porventura, algum dentre vós que, pedindo seu filho um pão lhe dará uma pedra? Ou se pedir um peixe lhe dará uma serpente? Pois, se vós que sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que O pedirem.”

Dir-se-ia que o Senhor, por vezes, troca os papéis, quando mediante a graça atual nos solicita para que oremos, para que tributemos à Providência este culto que lhe é devido e dela recebamos o que mais temos necessidade. Lembremos aquele exemplo de Nosso Senhor induzindo a Samaritana a orar: “Se conhecesses o dom de Deus, você mesmo me pediria de beber... e Eu te daria a água viva..., que jorra para a vida eterna.” Nosso Senhor suplica para que recorramos a Ele; Ele é “paciente em esperar e impaciente para conceder”.

Nosso Senhor é como um pai que tem de antemão resolvido agradar a seus filhos, porém os induz a pedir lhe. Jesus queria converter a Samaritana, e pouco a pouco fez a oração brotar da alma daquela mulher; porque a graça santificante não é como um licor que se verte em um vaso inerte, antes bem, uma vida nova que o adulto não recebe sem a condição de deseja-la.

Parece que às vezes Nosso Senhor não quer ouvir-nos, sobretudo quando a oração não é bastante pura, ou o objeto dela são os bens materiais em si mesmos e não em relação à salvação. Pouco a pouco a graça nos convida a pedir melhor, recordando-nos a palavra do Evangelho: “Buscai em primeiro lugar o reino dos céus e tudo o mais vos será dado em acréscimo.”

Outras vezes parece que Nosso Senhor nos recusa, como para provar nossa perseverança. Vez deste modo com a Cananéia, lançando lhe esta dura frase, que parecia uma negativa: “Eu não fui enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel; não é justo tomar o pão dos filhos e lança-los aos cães.” A Cananéia, inspirada por certo pela graça que vinha de Cristo, respondeu: “É verdade, Senhor; porém os cachorros comem as migalhas que caem da mesa de seus donos.” “Ó mulher! - Disse Jesus – grande é sua fé; faça-se conforme o pedes.” (Mt. 15,22). E sua filha que era atormentada pelo demônio, ficou curada.

O que ora reconhece que está subordinado ao governo de Deus, infinitamente superior ao dos homens; e o reconhece na prática, não só na teoria e em abstrato. Nossa oração deve tributar incessantemente à divina Providência o culto que lhe é devido: culto de adoração, de súplica, de ação de graças e de reparação.

A oração coopera com o governo divino

A oração não se opõe as disposições providenciais, como se tratasse de torcê-las ou de mudá-las, antes, colabora com o governo divino; porque o que ora, quer no tempo o que Deus quer ab aeterno.
Poderia parecer que, quando oramos, a vontade divina se inclina para a nossa; a verdade é que nossa vontade se eleva até a divina e trata de colocar-se em uníssono com ela. Porque em elevar a mente a Deus, como dizem os Santos Padres, consiste a oração, por vezes de petição, outras de adoração, também de louvor, reparação ou ação de graças.

O que ora como convém, ou seja, com humildade, confiança e perseverança, pedindo os bens necessários para a salvação, colabora com o governo divino. São dois, em lugar de um, que querem a mesma coisa. Esse pecador por quem temos largamente orado, Deus é quem o converte. Essa alma atribulada, para quem temos pedido com insistência luz e fortaleza, Deus é quem a ilumina e fortalece; porém Deus tinha resolvido desde toda a eternidade não produzir o efeito salutar senão com o nosso concurso, depois de nossa intercessão.

As consequências deste princípio são inumeráveis.

Segue-se primeiro que quanto mais conforme seja a oração com as intenções de Deus, tanto mais colabora com o governo divino.  Para que cada vez mais nossa oração seja conforme à vontade divina, rezemos todos os dias, em silêncio e no íntimo da alma, o Pai Nosso, e meditemo-lo acompanhando nossa fé com o amor. Esta meditação amante se tornará contemplativa; por ela obteremos que o nome de Deus seja santificado, glorificado em nós e ao nosso redor, que seu reino venha, que sua vontade se cumpra na terra como se cumpre no Céu; obteremos também o perdão de nossas faltas, a liberação do mal, a santificação e a vida eterna.

Segue-se também que nossa oração ganhará em pureza e eficácia se a fazemos em nome de Cristo, o qual saberá suprir a deficiência de nosso amor e de nossa adoração.

O cristão que cada dia reza melhor o Pai Nosso, e o diz do fundo de sua alma por si mesmo e pelo próximo, coopera grandemente com o governo divino. Coopera muito mais que os sábios que descobriram as leis do curso dos astros, mais que os grandes médicos que encontraram remédios de espantosas enfermidades. A influência da oração de um São Francisco de Assis, de um Santo Domingos, de Santa Teresinha do Menino Jesus, não é certamente inferior a de um Newton ou Pasteur. Quem ora como oraram os Santos, coopera com a salvação dos corpos e das almas; cada um que abre as janelas de suas faculdades superiores para o infinito, é como um universo que gravita em torno de Deus.

Se atentamente consideramos estas íntimas relações da oração com a Providência, concluiremos que àquela é mais poderosa que o ouro, mais eficaz que a ciência. A ciência chega a resultados maravilhosos, porém se adquire por meios humanos e produz efeitos que não excedem os limites naturais. Porém a oração é uma força sobrenatural, cuja eficácia vem de Deus, dos méritos infinitos de Cristo, da graça atual que nos move a orar; é uma força espiritual mais poderosa que todas as forças naturais juntas. Ela consegue o que somente Deus pode conceder: a graça da contrição, da caridade perfeita e da vida eterna, que é o fim do governo divino, a manifestação última da sua bondade.

Consideremos com particular interesse a necessidade e a excelência da oração; sobretudo da oração unida à de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Bem-aventurada Virgem Maria, nestes críticos momentos em que tantos perigos pairam sobre a Europa1;  neste momento em que a desordem geral deve, pelo contrário, servir-nos de estimulante para pensar todos os dias que estamos não somente sob o governo dos homens, continuamente desatinado e imprudente, senão sob o governo infinitamente sábio de Deus, que não permite o mal senão com olhar para um bem superior, e quer que cooperemos para esse bem por meio da oração cada dia mais sincera, profunda, mais humilde e confiante, mais perseverante, por meio da oração unida à ação, a fim de que cada dia se realize em nós e ao nosso redor a petição do Pai Nosso: Fiat voluntas Tua, sicut in coelo et in terra. Nestes momentos, quando o comunismo realiza tantos esforços contra Deus, convém repeti-lo com redobrada sinceridade, não somente de palavra, senão com atos, afim de que o Reino de Deus substitua o reino da concupiscência e do orgulho. Assim chegaremos a compreender de maneira prática e concreta que Deus não permite os males senão com vista a bens superiores, que chegaremos a ver, se não aqui em baixo, depois da morte.